terça-feira, 14 de outubro de 2008

O rio ou a travessia

Ele perdeu o fôlego, mas não queria chegar à margem de lá do rio. Fatigava-se. Entre as águas revoltas, afogava-se, tossia, cuspia um caldo amarelado - mistura de água e restos de comida que saia de seu esôfago. Agitava-se em meio ao turbilhão molhado. Rio feroz e lamacento. Mas mesmo assim, queria ficar lá, cansando-se. Lutando contra correntezas, exercitando a força dos músculos em uma queda de braço desigual com a força divina da natureza. Mantinha-se firme dentro do rio. Fragilizado. Paradoxal.
Sim, sabia nadar. As crises na água, os acessos de tosse, o cuspe fatigado se davam apenas quando vinham as fortes correntezas – que levavam sua força e esperança. Nadava depressa. Estranhamente, ele não queria chegar à margem de lá. Quando tossia muito, procurava um caminho paralelo à outra beirada do rio. Sabia que as paralelas não se cruzavam. Assim, acreditava não correr riscos de ser ver na encosta. Mas nadava depressa para onde? Ele não sabia. E acreditava que pensar nisso era coisa de filósofo. De desocupado. Ele era ideologicamente capitalista. Tempo é dinheiro. Pensar gasta tempo. Executa! Executa! Faz logo, sem se perguntar muito! Onde estão os rendimentos?
E sem mais perguntas, executava os movimentos de braços e pernas, mantendo-se na água. Mas nem sempre era a tal da agitação molhada. Às vezes, o rio se tornava calmo. Lento. Parecia a tranqüilidade feliz trazida pelo amor de uma donzela. E ele sorria. Embasbacado. Amava a água. O rio! Ah! O rio era lindo! Os peixes nas suas entranhas traziam a seiva para a vida. E animava-se em nadar, fazia movimentos vorazes, queria abraçar aquelas águas lindas. Vontade de vida! De exercê-la sem medo, cultivando somente paixões.
Nadava. Nadava. Nadava. E estava sempre em meio à antítese alternada. Entre as correntezas fortes e a calmaria represada. Mas um dia seus músculos anciãos foram murchando. A carne em pelancas. Isso não podia! Fizera sempre muitos exercícios! A fragilidade do corpo humano não podia acometê-lo! Com ele não! Sim, meu caro. O próprio rio o desgastou. Vida fatigada. A carne já quase podre, quase pó. E não conseguia mais nadar. A ferocidade das águas barrosas levava-o para a tão temida beirada do rio. Ele ainda tentava lutar. Tinha medo! Urinou. Amareladamente. Covardemente (era preciso muita coragem para assumir essa covardia). Nas águas aquecidas pelo sal de seu corpo, ele nadava – olhos fechados para não ver a margem - contra a corrente. Corrente natural da vida. Fluxo divino.
Na margem, morreu. As águas do rio da vida ficaram calmas novamente. Marasmo. Elas apenas esperavam o próximo nadador que iria se debruçar na encosta sonhando em ter, no sono eterno, outro rio por onde navegar. Sonhando em ver outras águas do lado de lá. Sonhando em se jogar em novas correntezas. Querendo mais a antitética aventura da vida!

(Luana Borges)