segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A morte da máscara oficial

Mário Braz
Luana Borges
Terça-feira, nove da manhã, o sol começando a esquentar. Saio de casa, cara de rotina, roupa de rotina, clima de rotina. Bolsos carregando preocupações modernas, ticket de ônibus, telefone, chaves, carteira e contas. O corpo, ainda acostumado ao descanso da cama, vai se desenrolando pela rua, na fumaça e no barulho dos carros, crianças, conversas e hábito.

A cada passo, um pensamento cai, uma preocupação aparece. A falta de algo checa os bolsos, a pasta e o tato do corpo. A falta de personagem pesa sobre a cabeça, como uma autopunição. Como poderia esquecer minha figura dramática? Deve ter adormecido, se enrolado nas cobertas e agora descansa no vazio frio de uma cama vaga. Com que cara esconderei toda a minha irresponsabilidade? Como dissimularei a inexistência de interesse? Meus músculos não saberão como agir. Vão escrever nas linhas da minha face toda mentira escondida nos diálogos fingidos, todo o não consentimento mascarado.

Sou o resumo daquele que não concorda e que, no entanto, cala. Por mudez, vinda de pura preguiça, finjo consentir. Internamente, contudo, a revolta é grande. E tola. Em meio às preocupações de meu bolso – o bilhete do ônibus, o dinheiro contado, a conta de luz, as letras secretas de alguém – carrego o retrato 3x4 de um dos meus rostos mais sisudos. Retrato de um olhar que parece querer correr de toda a insanidade que por vezes mentimos não ver, ou a fingimos normal.

Outro olhar fugidio. Na rua da vida o moleque vende goma. E a gente desvia os olhos. Optamos pelas fotos claustrofóbicas e enclausuradas dos shoppings. O menino vende bala e ninguém sabe dele. Ninguém quer saber. Assim continuamos tecendo diálogos com quem não nos importa, em um ar condicionado gélido e artificial. Escritório. Óculos. Tapinha nas costas de engravatados cardíacos e desinteressantes.

Ah! Interessa-me mais o menino e o movimento na rua. Interessa-me aquilo que ninguém percebe. Comove-me o pássaro no fio tenso de eletricidade e o vendedor de picolés que proseia feito poeta. Até me esqueço da conta de luz. Mas o ônibus continua a correr. A coisa não pára. Leva-me à rotina.

Outro senhor engravatado. Dez da manhã. Ponto eletrônico. Pasta repleta de documentos. Minhas digitais coincidentes com meu fingimento matinal. A conta grita no bolso e cala meu menino no semáforo. Desperto a figura dramática que deixei embrulhada nos cobertores de minha cama e visto a indumentária habitual. Sorrio com hálito de café à secretária.
Entretanto, um dia gritarei. Desequilibrando-me da linha tênue do hábito. Na corda bamba. Meu Deus! Onde está a minha máscara oficial? Caiu no picadeiro. Durante o show de equilibrismo. E me restará, apenas, gritar o convite: “Respeitável público, chamo a todos para escutarem os repentes das ruas!” O senhor engravatado vai embora, indignado. “Pessoas que não têm o que fazer”.

Eu então rio a poesia de meu sorveteiro e masco os chicles do moleque que corre. O homem do terno, por sua vez, enxuga o suor. É um senhor respeitável. Chega à sua casa com ar notório. Não encontra a mulher. Ela deve ter ouvido qualquer poema, para além de seu muro alto, metrificado os passos e seguido o som da lira. O homem sozinho, tão respeitado, mas sem rima alguma que soe seus tons. Suado. Enforca-se com sua gravata vermelha.

Sem lira

Com ira

Sem lírios

Delírio

(seus louros não valeram uma vida enforcada).