quarta-feira, 2 de maio de 2012

A vida secreta da estrela


Por Luana Borges


Como vós podeis supor (se não supõem, vos falo), o olho de quem tem sangue de repórter é inquieto e ouve tudo. É olho circundante. E naquele dia as pupilas davam mais voltas em minha íris amarela do que jamais a serena catraca do Circular Aeroporto-Via Setor Jaó ousara percorrer em seu movimento cotidiano de rotação. Eu vinha nesse ônibus. Eu a rodar pelo centro da cidade rumo à minha casa. As pupilas giravam mais que eu, estavam danadas e reparavam em tudo. Além de atentos ouvintes, esses olhos eram faladeiros demais e uma pupila fuxicava à outra o que vira. Fuxicava como vos fuxico agora.

É que o moço, no ônibus, estava muitíssimo interessado na moça. E o moço contava vantagens só porque tinha moto e fazia compras em supermercado grã-fino. Também pedalava, tinha corpo bonito de homem bonito e musculoso e, além do mais, falava que iria a Brasília sobre duas rodas. Ele, possante, braços firmes e duros, guidão da bicicleta.  Mas a moça sequer conhecia o bar da moda, trabalhava como atendente de empresa aérea em aeroporto e jamais saía de casa sem sua maquiagem de aeromoça. Estava era interessada no jantar que o moço prepararia.

Houve uma novela, certa vez, sobre uma estrela apagada. Era necessário muito esforço para vê-la. Mais, era necessário quase um dom para que se pudesse notá-la no céu negro e frio de uma vida. Essa estrela apagada era moça e se chamava Macabéa. Então, naquele dia no ônibus, eis que me deparo com a atendente maquiada, sua luz própria fraca e fraca, o balcão era seu palco. A roupa rala se fingia chique. O batom carmim.  Ela era a minha Macabeá, fugida das páginas da novela. 

- É um encontro gas... gastro...gas... gastronômico? É assim que se fala? – dizia ela.

- Sim, um jantar. Sim, gastronômico.  Gas-tro-nô-mi-co. respondia o homem sábio.

 Então a moça sorria e deixava entrever uma ruga, pequenos pés-de-galinha que rompiam na aridez da pele empoada. Tinha pouca idade. Uns trinta. Não pude saber como ela se chamava porque meus olhos eram velhas fofoqueiras de vilas distantes e, apesar de hábeis, eles auscultaram, auscultaram e auscultaram e, no fim, nada de revelações. Mas quando uma velhinha – apenas aquelas desse tipo que meus olhos são – não sabe a palavra exata, se ela for hábil mesmo inventa um sinônimo e continua a história. Daí a beleza das histórias.

E minha Macabéa podia ser qualquer uma dessas que andam de ônibus, empoadas e brancas, mais brancas do que deveriam, mocinhas que não conheciam o bar da moda e que tinham por obrigação ter um nariz bem empoado por detrás do balcão. A maquiagem era a proteção - espécie de armadura pela qual minhas Macabéas viam outros narizes empoados, estes soberbos, soerguidos por entre maçãs de rostos tão vermelhas quanto artificiais. As maçãs repletas de agrotóxicos e sem gosto.  Além das maçãs, essas meninas “Macas” também se protegiam de óculos que se equilibravam, sisudos, nas pontas de narizes engravatados e gordos.

Mas o quê os narizes de gravata e as bochechas avermelhadas sentiam mesmo em relação às minhas moças era indiferença. Não falavam porque era vergonhoso, também não interessava, mas eles tinham até certo nojinho do pó barato de farmácia que elas passavam naqueles narizes um pouco abertos, elas atrás do balcão, meu Deus!  Por sorte, Macabéas têm talento para se auto-anestesiarem. A armadura de ser moça aérea.

- No aeroporto são seis e trinta da tarde e, graças a Deus, eu vou para casa. O ônibus está cheio, mas hoje tem novela e a personagem vai ganhar na loteria. E é hoje. Vou ver... Ah vou ver! E comendo miojo... Qual o sabor do miojo que tenho em casa mesmo? Ah, galinha caipira!   

A mulher de minha história. Erguida das valas comuns de tantas outras, observada entre tantas macas enfileiradas, eu não sabia seu nome. Um sinônimo para ela então. Como seria o sinônimo? Ângela. Era muito parecida com Ângela. Misturava um ar angelical, gélido, gelo... A Ângela. Singela. Ela queria mesmo era usar suas asas de anjo para poder voar para longe – aérea fugia do aeroporto repleto de maçãs vermelhas e narizes soerguidos de pontas afiadas e sisudas. Aérea como no dia em que o vento tirou todo o pó de seu nariz e ela pôde, enfim, deixar ventar em sua pele seca sem armadura. E o vento era o que havia de melhor! Mas ela tampouco conhecia o bar da moda, não iria a Brasília de bicicleta, não tinha guidão nenhum que a guiasse. Sobretudo ela não tinha guidão. Ângela.

E o rapaz? O rapaz a incomodava porque ele era lindo e bom. Facilmente se percebia que aquele ônibus não era sua rotina. A moto lustrosa possivelmente estaria na revisão, podendo até ser, pelo tipo do moço, uma Kawasaki Ninja com seus 138 cavalos de potência máxima. Ele bem tinha cara de Kawasaki. Tinha um rosto lustroso, feições eficientes – cada qual com uma finalidade, pois ele parecia não ter tempo para o gratuito ­– e o vigor de caninos que desciam eretos, revelando-se em levíssimas e precisas pontas em seu sorriso largo. Era o melhor. Apetitoso. Ah, mas sua gastronomia, que preguiça de sua gastronomia! O rapaz era Ulisses. Era grandioso com seu nome heroico. Mas era também pesado de tanto músculo. Pena. Não dando para saber o nome dele – esse também – e a velha tendo de ser hábil, o sinônimo “Ulisses” parecia perfeito para o rapaz do guidão. Deixaria a moto, esportista sobre a magrela. Potente bicicleta que fala sobre seus louros.  Ele chega a Brasília, pedalando, pedalando, pedalando. Ai que cansaço, pensava Ângela.  

Mas é que um dia Ângela ganhara de sua madrinha, já falecida, o único presente valioso que lhe deram na vida. Um anel com uma pedra rara. Lindo. Raro. Mas Ângela era desastrada e a jóia caiu no ônibus, quebrando-se em miúdas partes. A moça lamentou. “Quanto dinheiro perdido! E minha madrinha, morta, que me queria tão bem. Perdoe-me, madrinha!” Mas se sentiu livre. O vento raleava a maquiagem, descobria o nariz aberto. Ela respirava tanto! Olhava os pequenos pedaços de pedra no piso do ônibus, esverdeados, reluzindo às primeiras horas da lua cheia. O vento parecia espalhar os raios da lua aos quatro cantos. Sem máscara, o rosto nu sem armadura.  E livre do peso da pedra em seu dedo. E o moço era pedra rara e linda. A joia.

Anel quebrado, lamento enfático em razão do dinheiro perdido e da falecida parente, mas dentro do peito silencioso um ânimo fresco de liberdade, que se misturava ao vento, à lua, ao dedo livre, ao ônibus que ia, ao verde caído da pedra despedaçada que reluzia, reluzia, reluzia, piscando, acendendo e apagando ao ritmo do trânsito e das voltas loucas do motorista. O coração acelerava a cada curva do velho centro. E Angela mal ouvia o último louro que Ulisses contava. Ele falava - sua boca abrindo e fechando - e ela livre. Sem bar da moda. Galinha caipira. É esse o sabor do miojo. Pensar é livre, pensava. O vento!

Foi então que... breque! O ônibus estacou em desaceleração fremente. O súbito sinal vermelho visto pelo motorista distraído. Os últimos desmanches de pedras rolando por debaixo dos bancos, agora pedacinhos verdes invisíveis, escondidos nas trevas baixas de poeira, de baratas e de chicletes incrustados no chão do coletivo. Macabéas arrancadas com violência de seus devaneios aéreos. Súbito sinal vermelho, ruído de pneus fritando ao asfalto sujo. O vento? O ônibus brecou repentino e, para Ângela, a volta à terra fora abafada. Pela primeira vez, desde que começara o intuito de pensar em liberdade, não foi o vento que lhe limpou da cara chata o pó de farmácia. O breque ria irônico de seu voo tolo, chamava-a à terra, semáforo fechado. Não! Onde está o vento? Um suor pegajoso escorria-lhe à testa, revelando, por entre o pouco pó ainda existente em sua pele, uma tez escura e crua e verdadeira. Escorria-lhe a transpiração, desenhando-lhe no rosto um suave e fino leito de rio, desses que naturalmente cortam a cara artificial da cidade.   

Violentada. Enxotada de sua vida secreta. O homem do guidão sequer percebera a pequena tragédia de Ângela. Apenas incomodado com a distração do motorista do ônibus – “parece que anda na lua”, dizia ele –, perguntou à moça se o jantar estava mesmo de pé.

- Hein, topa mesmo? Aí eu aproveito e mostro pra você a bicicleta.

Ela mal ouviu a pergunta. O homem de louros, colírio. Mas onde estava a lua cheia, meu Deus? Só via a bola vermelha da sinaleira. Uma nuvem negra escondia os raios lunares. Começava a chover, grosso e abafado e quente. A luz própria de Macabéa - antes envaidecida pelo vento - novamente fraca e fraca. Pela primeira vez voltando-se ao moço após a inundação de lua, disse-lhe que sim, que ele ligasse para confirmar o encontro. Passou-lhe o telefone.  Afinal, seria até bom saber em que consistia, de verdade mesmo, o tal “gastronômico”. Mas era palavra grandiosa, chata, ruim para falar, quase indigesta com seu dígrafo pesado. Macarrão instantâneo de galinha caipira era mais simples, ela mais livre em sua pacatez pensante, após a novela.

Mas pensou no guidão que guiava. Não queria. Queria o verde pisca-apaga da pedra quebrada, o ônibus roda-roda, o dedo livre, o vento, vento, vento, vento. Mas pensou no valor do anel. Mas pensou no pesar da madrinha morta.  Queria? Queria, não queria. E resolveu por fim, decidida e cansada, retocar a maquiagem desfeita. O ônibus rodava quando ela disse o “sim”, aceitando, encurralada, o convite. Afinal, devia aceitar porque sempre tinha sido desse modo, aquele mesmo tráfego no velho centro. Isso foi pelo menos o que supuseram as velhinhas de meus olhos, aquelas fofoqueiras que moravam em vilas distantes. Ah, elas viviam, claro, no démodé de casas antigas.


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sobre a mulher que sou. Sobre o homem que não sou. Sobre o homem que fui. Sobre o mundo que eu queria captar. Sobretudo, sobre a pretensão.

Luana Borges

Hoje eu não escreveria sobre mim. E até quereria que minhas palavras fossem homens. Quereria contar uma dessas histórias repletas de personagens e de ação, criatividade em cada ato. Quereria uma escritura distante da autobiografia. Meu texto não sou eu. Nunca foi. Vocês é que pensam que sim e se deixam levar por minhas histórias que me transcendem. Transcendem-me graças a Deus e graças à palavra que, assim como o deus, não me pertence e me está além. A palavra resvala em outrem. Não fica em mim. Assim reverbera o verbo que também não nasce de mim, que também não me é originário: cato-o no mundo, já repleto de sentidos, e essa é minha profissão. Aos jornalistas, falta o entendimento de que eles devem bordar o texto com cuidado, pesquisando seus fios no emaranhado do mundo. Muito tato e delicadeza, afinal há gente por entre as cordas fiadas. Mas, entre os fios das ruas mundanas, há outra porção de gente que merece mesmo ser enforcada.
Há gente ruim. Gente que rouba nosso dinheiro e nossa comida. Esses ladrões comem demais, compram demais, engordam demais, têm ouro demais, brilham demais, espreguiçam demais e pensam de menos. Essa gentinha ruim, que coloca grana em cuecas e em onde mais couber, deixa-nos com tudo de menos – compras, comidas, dinheiro, ouro e até pensamento, porque ninguém pensa demais com fome. “O homem faminto jamais procurará estabelecer uma relação estética com o alimento”[1]. Sua privação apenas dá lugar ao desejo de saciar-se rapidamente. Dessa forma, o valor estético, o pensar sentindo, o sentir pensando e a dimensão existencial da arte não o solicitam. É por isso que essa gente que nos rouba dinheiro – corrupção deslavada - rouba-nos também a vida e o sentir, rouba-nos o pensar e a fruição. Rouba-nos os prazeres mínimos vez que fazem com que pensemos apenas na necessidade primeira: o desejo de sobreviver. Quem apenas sobrevive - inspira, expira, inspira, expira - não tem tempo de vagar por reflexões existenciais. Estas nos são roubadas ante as circunstâncias imediatas de uma vida que urge.  Então nós, jornalistas, enforcamos, quando dá (a maioria das vezes não dá), os ladrõezinhos.
Enforcamo-nos como merecem e sem piedade, a pedido de um não sei quê de cidadania e de justiça. A pedido de nossa revolta (revolta que me faz até ser piegas). O problema é que, às vezes, em nossa sede por fios bem apertados ao redor de pescoços, enforcamos pessoas erradas e não merecedoras de nossa escória. Há gente que não merece a forca em praça pública. Aqui me veio outra divagação: alguém – por mais inescrupuloso – mereceria o cuspe em meio aos flashes? Fica pra outro papo. Esse não é o assunto de nossa prosa. Perdi-me com a ideia de emaranhado de fios nas ruas do mundo, perdi-me porque há gente por entre esses fios e minhas palavras não vêm de mim, elas nascem delas, nascem delas porque eu amo essa gente. Mas ainda não cheguei ao ponto. Quereria que minhas palavras, nesse texto, hoje fossem homens, que em minha história tivesse ação e personagens redondos, que essas linhas que as senhoras e os senhores lêem agora se sucedessem pela relação de causa e efeito e que, sobretudo, ninguém tivesse a audácia de dizer “mas esse texto é você”, tão “confessional”. Não é. É HOMEM. Escrevo apenas.
E minha escritura falaria então sobre o homem mais musculoso do mundo. Seria um homem tão salgado – o sal de seu corpo sarado da última corrida, do músculo enrijecido e do cansaço dos últimos abdominais – que os misóginos aplaudiriam sua dureza áspera. Ele se inflaria e se chamaria Francisco. Seria seguro. Cantaria mulheres. Cantaria até morrer. Até morrer, morrer de novo e nascer mulher. Porque, modernizando o que disse ainda em 1952 uma amiga chamada Teresa, se antes a engenharia da mulher era a de saber construir um lar, hoje, além da boa estrutura de nossos lares, também sabemos erguer casas.  Casa e lar sobre o nosso domínio. Temos em nós a engenharia de saber fazer concreto e o doce afeto de saber construir atmosferas.
Em casa de minha avó, o sábado era inteiro bolo de chuva se fazia sol, ou banana quente com canela se chovia muito. Que sabedoria de lar! E o sábado inteiro era meu e de outras crianças. E quando começávamos a ser domingo, ficávamos tristes e com cara de missa, mas logo nos lembrávamos do lar de primos e de vida que nos esperaria no próximo final de semana. A Dona Teresa de que falei há pouco, aquela dos idos de 1950, disse-me, em um texto seu, que uma criança pobre, ao ser inquirida por um homem de bigodes sobre o fato de sua família não possuir moradia, deu-lhe uma resposta incrível.  O bigodudo disse-lhe: “que pena vocês não terem o lar!”. A espertinha retrucou, espantada com a ignorância do amigo: “lar nós temos, o que não temos é uma casa pra botar o lar dentro”.
Mas me esqueci! Como hoje estou ensimesmada e egoísta, Meu Deus! (o texto tendo de sair do papel em prol de minha existência, Céus!). Por isso, esqueci-me completamente! Meu texto hoje é homem. Meu texto hoje quereria ser homem rude, daqueles que servem apenas para cantar mulheres. Daqueles que só pensam nisso. Mas meu texto, cantando mulheres, transformou-se em uma ode aos lares, é isso? E
às casas, claro.  Um poema à ciência do concreto e do atmosférico. Elas sabem de tudo, sacaram? Da matemática ao amor. Um beijo então desse homem, um conquistador barato que entende que elas sabem, e não só sentem, e que sentem, mesmo sabendo.
Leitor, meu personagem homem resvala em mim e está me sendo meio bruto agora. Bruto porque quer tomar voz e está um pouco chateado devido à forma como eu o trato. Em torno dele, não há cenário porque ainda não consegui criar a história de meus sonhos. Onde estão minhas causas e efeitos? Meus personagens redondos? Minhas cenas? As ações? As descrições? O cenário me é só a brancura de meu papel. Ele fala:
- Tendo de ser homem bruto, pois minha criadora assim me quer, pensei em só cantar mulheres. Mas resolvi cantá-las em sabedoria e traí minha criadora em defesa dos homens. Traí-a e já é fim de texto, estou quase por morrer mesmo. Inevitavelmente morrerei. Já que é assim, não tenho medo de que ela, a criadora, mate-me devido à minha traição! Traí-a, pois cantei a inteligência de mulheres lindas. Não me detive aos seus corpos. Entretanto minha criadora querer-me-ia rude! O que consegui – céus! - foi uma ode aos lares e às casas. Ao concreto que elas dominam. Ao atmosférico que elas detêm. Minha ode significou parabéns, admiro-as! Eu não fui o Francisco áspero. Sendo Chico, fiz música das palavras. Cantei vida, olhos e mulheres. Cantei até morrer. Fui doce em meio ao sal de meu corpo sarado de músculo enrijecido. Tão doce que eles, os misóginos, até riram de mim. E eu os defendi, homens. Fui o homem que devia ter sido.  O homem que elas admiram, inclusive a criadora, que está com raiva somente porque, em verdade, quereria era jogar com as letras e fazer refletir com outra espécie de personagem-tipo, dessa espécie de homem bruto que está me lendo agora e rindo inteiro de macheza.
Então eu digo a este homem meu personagem, o único que me foi possível: “Não fui traída por você”. Traí-me a mim mesma. E ao leitor. Porque este texto, homem tão doce, acabou mesmo, a despeito de eu ter jurado que não o faria, sendo um pouco: de mim. É o fim.
Mas, no fim, sempre fica a transcendência das palavras. Que não morrem com meu personagem. Tampouco morrem comigo. Nunca é autobiográfico, nunca é simples assim. As palavras estão além. E sopram. Elas detêm o segredo de chiiiaaar, aos quatro ventos.


[1] Eduardo Portella.

domingo, 18 de setembro de 2011

Divagações após um dia bom


Ter sorte, certa inteligência e ser feliz significa saber escolher pessoas a dedo. Minhas pessoas foram – e são - tão bem escolhidas que receio faltar-me amor.  E, quanto mais receio, mais amor tenho. Porque o amor se constrói no incerto bom, que de uma hora para outra vira diálogo bom, que de outra hora para outra vira cotidiano, que logo vira convivência e que, quando se vê (não se imaginava!), mesmo distante se sente amor. O ponto em que a distância não importa é aquele em que, não mais que de repente, essas nossas pessoas, por fazerem parte de nós, acabam inevitavelmente se transformando em nossas vidas (e de uma vida que é própria e nossa obviamente nós não nos distanciamos). E saber que tudo começou com um receio de dar bom dia ou de contar um segredo. Mas a vida não começa no receio? Aceitá-la toda viva não é atitude sem medo.
     Um indivíduo só é uno quando pode enxergar em si mesmo uma porção de outros. Só assim, pelo outrem que se vê no seio, surge uma ousadia forte. Uma coragem que é capaz de desfazer todo o medo primeiro de uma vida. A partir dela, todo o trêmulo “sim” ao ato de viver transforma-se em brado confiante. Todo o receio se esvai então em sorrisos. Sorri quem sabe escolher a dedo. Escolher a dedo a outridade certa – e saber colocá-la em nós - é a sabedoria mais doce. E saber docemente é o que procuro agora.
     Ao fim, resta-me então destinar esse pequeno texto aos Meus. Meus porque estão em Mim e me são a outridade essencial. Ora, meus porque simplesmente... me são. Deve-se perceber que o milagre mais forte está em nós e não além. O milagre mais forte é justamente a possibilidade de caberem tantas pessoas em um único seio.  Descobre-se então - não sem espanto e perplexidade – que viver é simples, o que não quer dizer fácil. Docemente, descobre-se que talvez uma vida inteira seja apenas só - e tudo - isso.
(Luana Borges)

domingo, 4 de setembro de 2011

A moça viajante e a vida de sua cozinha


Luana Borges
Um dia ela se mostrou menos menina. Cortou os cabelos. Pintou as unhas. Decidiu não mais esperar que ele viesse, cavalo branco que galopa apenas insossas ilusões. Um dia ela fez as malas, poucas roupas vestiam uma vida inteira. Um dia ela matou de saudade quem pensava que ela se manteria ali, mesma cidade de menina de cabelos presos. Um dia seus fios jogados ao vento. Agora lindos ao vento. Um dia suas mãos forasteiras plantaram em outras terras. Seus cabelos peregrinos cortaram praças e avenidas por onde sobrevoavam pássaros de cores. E a boca estrangeira tudo balbuciava na cidade verde do vale longínquo.
Mas um dia, depois de escrever a vida em ruas distantes, ela voltaria com um diário repleto de histórias. Ela voltaria e faria rir quem ficou esperando-a no concreto cinzento, quem morreu de saudades e de fumaça. Ela contaria todas as peripécias e as verdinhas normalidades cotidianas em doces fios de prosa. Ela desenrolaria, na cozinha de café quente, os novelos vividos na cidade longínqua. Dos novelos, novelas do tamanho da paz. Na cozinha, ela ia desnovelando os caminhos de fada.
Desnovelava até chegar o dia em que teria de recolocar a linha na agulha. Teria de ir a outro lugar, tecendo vida. Talvez chegaria a uma cidade laranja de sol oriental. Moça tão breve. Um dia seus fios de novo jogados ao vento, olhando tudo como estrangeiros, descobrindo tudo, tateando tudo, balbuciando tudo.
Mas é certo que haveria o dia em que a moça enraizaria os seus contos coloridos. Não hoje. Tampouco breve. Não amanhã. Um dia, sem tempo cobrado. Mas agora ela sabia: tinha de ir rápido ao encontro de outros ares e pares. Tinha de correr e sorrir à falta de sua cozinha que tudo acalenta, onde estão xícaras e bules que conversam prazenteiros. Já era hora: o dia era de ir.
Então iria. Mas não sem antes dar o último gole bicado naquele seu café, tão quente. Despedir-se-ia apenas: apenas para poder voltar. E apenas para depois se aquecer– mais uma vez e sempre e mais outra – ao gosto da bebida forte que havia em seu lar, que havia dentro daquele bule de sua cozinha-mãe. Ali, as panelas estavam sempre ao fogo. O tilintar de pratos e de chávenas e de talheres ressoava o vaporzinho de café fresco e o cheiro de frutas. Era como se as panelas fossem sabedoras dos retornos essenciais daquela moça.
E a verdade era que quem dava vida à cozinha-mãe eram as pessoas que, como a moça, chegavam viajantes das ruas. Ali, elas desnovelavam seus caminhos de fada. Sempre chegavam, dependuravam seus chapéus e bolsas e casacos, bicavam o forte café e começavam os novelos de prosa. A cozinha-mãe era inteira ouvidos. Era inteira ouvida também. E, às vezes, as caçarolas olhavam tão confortáveis os que ali estavam que a eles só lhes restava confessar segredos... E rir da vida. Geralmente os risos eram à tardinha. Sorrisos abertos que saudavam a noite e deixavam as pequenas xícaras sujas, borradas de café. Após os novelos de fios de conversa, a noite terminaria em novela. Ou em um bom livro. Lido com calma antes da próxima viagem.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Sobre a Angústia da Influência (ou Breve Recado de Uma Amadora)

Se eu conseguisse escrever, Clarice, possivelmente isso seria um verso.
Se eu conseguisse escrever Clarice, isso seria um verso.


sábado, 6 de agosto de 2011

Notícia de última hora (ou A história da moça do pequi)

Cuidado, raiz de um pequi eterno enforcou uma moça ontem. De pequi ela gostava (chegava a gostar muito), de modo que não fora aquele gosto exótico e bom e amarelo que a matara. O que a matara, de fato, foi a eternidade. A eternidade de um pequi enraizado. Ali e sempre. Ela, que era moça passageira. Tão passageira que a confundiam com pessoa atônita.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A morte da máscara oficial

Mário Braz
Luana Borges
Terça-feira, nove da manhã, o sol começando a esquentar. Saio de casa, cara de rotina, roupa de rotina, clima de rotina. Bolsos carregando preocupações modernas, ticket de ônibus, telefone, chaves, carteira e contas. O corpo, ainda acostumado ao descanso da cama, vai se desenrolando pela rua, na fumaça e no barulho dos carros, crianças, conversas e hábito.

A cada passo, um pensamento cai, uma preocupação aparece. A falta de algo checa os bolsos, a pasta e o tato do corpo. A falta de personagem pesa sobre a cabeça, como uma autopunição. Como poderia esquecer minha figura dramática? Deve ter adormecido, se enrolado nas cobertas e agora descansa no vazio frio de uma cama vaga. Com que cara esconderei toda a minha irresponsabilidade? Como dissimularei a inexistência de interesse? Meus músculos não saberão como agir. Vão escrever nas linhas da minha face toda mentira escondida nos diálogos fingidos, todo o não consentimento mascarado.

Sou o resumo daquele que não concorda e que, no entanto, cala. Por mudez, vinda de pura preguiça, finjo consentir. Internamente, contudo, a revolta é grande. E tola. Em meio às preocupações de meu bolso – o bilhete do ônibus, o dinheiro contado, a conta de luz, as letras secretas de alguém – carrego o retrato 3x4 de um dos meus rostos mais sisudos. Retrato de um olhar que parece querer correr de toda a insanidade que por vezes mentimos não ver, ou a fingimos normal.

Outro olhar fugidio. Na rua da vida o moleque vende goma. E a gente desvia os olhos. Optamos pelas fotos claustrofóbicas e enclausuradas dos shoppings. O menino vende bala e ninguém sabe dele. Ninguém quer saber. Assim continuamos tecendo diálogos com quem não nos importa, em um ar condicionado gélido e artificial. Escritório. Óculos. Tapinha nas costas de engravatados cardíacos e desinteressantes.

Ah! Interessa-me mais o menino e o movimento na rua. Interessa-me aquilo que ninguém percebe. Comove-me o pássaro no fio tenso de eletricidade e o vendedor de picolés que proseia feito poeta. Até me esqueço da conta de luz. Mas o ônibus continua a correr. A coisa não pára. Leva-me à rotina.

Outro senhor engravatado. Dez da manhã. Ponto eletrônico. Pasta repleta de documentos. Minhas digitais coincidentes com meu fingimento matinal. A conta grita no bolso e cala meu menino no semáforo. Desperto a figura dramática que deixei embrulhada nos cobertores de minha cama e visto a indumentária habitual. Sorrio com hálito de café à secretária.
Entretanto, um dia gritarei. Desequilibrando-me da linha tênue do hábito. Na corda bamba. Meu Deus! Onde está a minha máscara oficial? Caiu no picadeiro. Durante o show de equilibrismo. E me restará, apenas, gritar o convite: “Respeitável público, chamo a todos para escutarem os repentes das ruas!” O senhor engravatado vai embora, indignado. “Pessoas que não têm o que fazer”.

Eu então rio a poesia de meu sorveteiro e masco os chicles do moleque que corre. O homem do terno, por sua vez, enxuga o suor. É um senhor respeitável. Chega à sua casa com ar notório. Não encontra a mulher. Ela deve ter ouvido qualquer poema, para além de seu muro alto, metrificado os passos e seguido o som da lira. O homem sozinho, tão respeitado, mas sem rima alguma que soe seus tons. Suado. Enforca-se com sua gravata vermelha.

Sem lira

Com ira

Sem lírios

Delírio

(seus louros não valeram uma vida enforcada).

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

De uma tarde, por Graça

Se daquela tarde pudesse tirar algum sorriso ou alguma lágrima, tudo isso viria do caminho de volta. Fez a mesma rota de antes, no mesmo carro, o mesmo sinal e quem sabe as mesmas pessoas que caminhavam na praça. A mesma amiga do lado. Chegou. Riu. Tomou aquele mesmo café, apenas aquecido. Riu de novo com a boca de um amargo bom. Serviu. Falou. Foi embora. Graça, menina que via tudo e que não entendia metade das coisas do mundo, porque não entendia metade de si mesma. Apenas sabia que olhava cansada para aquela moça do carro ao lado, que devia ter trabalhado todo o dia como atendente, seu uniforme branco-vermelho de um pano ralo.

A moça elogiara o cabelo de Graça. Um elogio, apenas gratuito. De graça. A menina tinha vontade de elogiá-la também, retribuindo, como tem de ser. Mas não conseguira, semáforo aberto, apenas reparara no tom vermelho, batom da boca da moça, boca bem desenhada e fina. A moça era bonita. Mas não recebera elogios. O sinal abriu e Graça muito se ateve ao batom e às listras branco-vermelhas daquele uniforme. Ateve-se tanto que até se esqueceu. Por se ater, esquecia-se com frequência de falar. Mas via tudo. As coisas, naquela tarde, passavam por ela como há muito não acontecia. Um ponto de ônibus lotado de trabalhadores e estudantes, como antes.

E, sob o mesmo ar vespertino, era de novo a menina que corria ruas. A vida seria correr ruas tão doces e sujas. A vida seria se ater a postes, luzes, ventos, canteiros, árvores, olhares, sorrisos e até a pessoas inteiras. A vida apressava-se com o sol e dançava com a lua. E, de sol-a-sol, formava-se num eterno presente que pensa o futuro. E, de tão terno presente de vida, Graça, lindamente humana, não o recebia com a devida gratidão. Estava longe dos santos.

Restava-lhe então ir. Rir. Mas aquele riso assim sem graça - de quem apenas ia - às vezes divinamente se esquecia de ser amarelo. Aí se engraçava. Graça enchendo-se de si. Engraçando-se aos poucos. Esforçava-se então: não cobraria mais nada de Deus. Tampouco duvidaria da Bondade. Dar-se-ia. Dar-Lhe-ia, apenas grata, sus gracias.

(Luana Borges)

Esta é da Clarice Lispector, publicada no Jornal do Brasil, em seu espaço para crônicas:

DESAFIO AOS ANALISTAS
Sonhei que um peixe tirava a roupa e ficava nu.