sexta-feira, 5 de novembro de 2010

De uma tarde, por Graça

Se daquela tarde pudesse tirar algum sorriso ou alguma lágrima, tudo isso viria do caminho de volta. Fez a mesma rota de antes, no mesmo carro, o mesmo sinal e quem sabe as mesmas pessoas que caminhavam na praça. A mesma amiga do lado. Chegou. Riu. Tomou aquele mesmo café, apenas aquecido. Riu de novo com a boca de um amargo bom. Serviu. Falou. Foi embora. Graça, menina que via tudo e que não entendia metade das coisas do mundo, porque não entendia metade de si mesma. Apenas sabia que olhava cansada para aquela moça do carro ao lado, que devia ter trabalhado todo o dia como atendente, seu uniforme branco-vermelho de um pano ralo.

A moça elogiara o cabelo de Graça. Um elogio, apenas gratuito. De graça. A menina tinha vontade de elogiá-la também, retribuindo, como tem de ser. Mas não conseguira, semáforo aberto, apenas reparara no tom vermelho, batom da boca da moça, boca bem desenhada e fina. A moça era bonita. Mas não recebera elogios. O sinal abriu e Graça muito se ateve ao batom e às listras branco-vermelhas daquele uniforme. Ateve-se tanto que até se esqueceu. Por se ater, esquecia-se com frequência de falar. Mas via tudo. As coisas, naquela tarde, passavam por ela como há muito não acontecia. Um ponto de ônibus lotado de trabalhadores e estudantes, como antes.

E, sob o mesmo ar vespertino, era de novo a menina que corria ruas. A vida seria correr ruas tão doces e sujas. A vida seria se ater a postes, luzes, ventos, canteiros, árvores, olhares, sorrisos e até a pessoas inteiras. A vida apressava-se com o sol e dançava com a lua. E, de sol-a-sol, formava-se num eterno presente que pensa o futuro. E, de tão terno presente de vida, Graça, lindamente humana, não o recebia com a devida gratidão. Estava longe dos santos.

Restava-lhe então ir. Rir. Mas aquele riso assim sem graça - de quem apenas ia - às vezes divinamente se esquecia de ser amarelo. Aí se engraçava. Graça enchendo-se de si. Engraçando-se aos poucos. Esforçava-se então: não cobraria mais nada de Deus. Tampouco duvidaria da Bondade. Dar-se-ia. Dar-Lhe-ia, apenas grata, sus gracias.

(Luana Borges)

Esta é da Clarice Lispector, publicada no Jornal do Brasil, em seu espaço para crônicas:

DESAFIO AOS ANALISTAS
Sonhei que um peixe tirava a roupa e ficava nu.