quarta-feira, 2 de maio de 2012

A vida secreta da estrela


Por Luana Borges


Como vós podeis supor (se não supõem, vos falo), o olho de quem tem sangue de repórter é inquieto e ouve tudo. É olho circundante. E naquele dia as pupilas davam mais voltas em minha íris amarela do que jamais a serena catraca do Circular Aeroporto-Via Setor Jaó ousara percorrer em seu movimento cotidiano de rotação. Eu vinha nesse ônibus. Eu a rodar pelo centro da cidade rumo à minha casa. As pupilas giravam mais que eu, estavam danadas e reparavam em tudo. Além de atentos ouvintes, esses olhos eram faladeiros demais e uma pupila fuxicava à outra o que vira. Fuxicava como vos fuxico agora.

É que o moço, no ônibus, estava muitíssimo interessado na moça. E o moço contava vantagens só porque tinha moto e fazia compras em supermercado grã-fino. Também pedalava, tinha corpo bonito de homem bonito e musculoso e, além do mais, falava que iria a Brasília sobre duas rodas. Ele, possante, braços firmes e duros, guidão da bicicleta.  Mas a moça sequer conhecia o bar da moda, trabalhava como atendente de empresa aérea em aeroporto e jamais saía de casa sem sua maquiagem de aeromoça. Estava era interessada no jantar que o moço prepararia.

Houve uma novela, certa vez, sobre uma estrela apagada. Era necessário muito esforço para vê-la. Mais, era necessário quase um dom para que se pudesse notá-la no céu negro e frio de uma vida. Essa estrela apagada era moça e se chamava Macabéa. Então, naquele dia no ônibus, eis que me deparo com a atendente maquiada, sua luz própria fraca e fraca, o balcão era seu palco. A roupa rala se fingia chique. O batom carmim.  Ela era a minha Macabeá, fugida das páginas da novela. 

- É um encontro gas... gastro...gas... gastronômico? É assim que se fala? – dizia ela.

- Sim, um jantar. Sim, gastronômico.  Gas-tro-nô-mi-co. respondia o homem sábio.

 Então a moça sorria e deixava entrever uma ruga, pequenos pés-de-galinha que rompiam na aridez da pele empoada. Tinha pouca idade. Uns trinta. Não pude saber como ela se chamava porque meus olhos eram velhas fofoqueiras de vilas distantes e, apesar de hábeis, eles auscultaram, auscultaram e auscultaram e, no fim, nada de revelações. Mas quando uma velhinha – apenas aquelas desse tipo que meus olhos são – não sabe a palavra exata, se ela for hábil mesmo inventa um sinônimo e continua a história. Daí a beleza das histórias.

E minha Macabéa podia ser qualquer uma dessas que andam de ônibus, empoadas e brancas, mais brancas do que deveriam, mocinhas que não conheciam o bar da moda e que tinham por obrigação ter um nariz bem empoado por detrás do balcão. A maquiagem era a proteção - espécie de armadura pela qual minhas Macabéas viam outros narizes empoados, estes soberbos, soerguidos por entre maçãs de rostos tão vermelhas quanto artificiais. As maçãs repletas de agrotóxicos e sem gosto.  Além das maçãs, essas meninas “Macas” também se protegiam de óculos que se equilibravam, sisudos, nas pontas de narizes engravatados e gordos.

Mas o quê os narizes de gravata e as bochechas avermelhadas sentiam mesmo em relação às minhas moças era indiferença. Não falavam porque era vergonhoso, também não interessava, mas eles tinham até certo nojinho do pó barato de farmácia que elas passavam naqueles narizes um pouco abertos, elas atrás do balcão, meu Deus!  Por sorte, Macabéas têm talento para se auto-anestesiarem. A armadura de ser moça aérea.

- No aeroporto são seis e trinta da tarde e, graças a Deus, eu vou para casa. O ônibus está cheio, mas hoje tem novela e a personagem vai ganhar na loteria. E é hoje. Vou ver... Ah vou ver! E comendo miojo... Qual o sabor do miojo que tenho em casa mesmo? Ah, galinha caipira!   

A mulher de minha história. Erguida das valas comuns de tantas outras, observada entre tantas macas enfileiradas, eu não sabia seu nome. Um sinônimo para ela então. Como seria o sinônimo? Ângela. Era muito parecida com Ângela. Misturava um ar angelical, gélido, gelo... A Ângela. Singela. Ela queria mesmo era usar suas asas de anjo para poder voar para longe – aérea fugia do aeroporto repleto de maçãs vermelhas e narizes soerguidos de pontas afiadas e sisudas. Aérea como no dia em que o vento tirou todo o pó de seu nariz e ela pôde, enfim, deixar ventar em sua pele seca sem armadura. E o vento era o que havia de melhor! Mas ela tampouco conhecia o bar da moda, não iria a Brasília de bicicleta, não tinha guidão nenhum que a guiasse. Sobretudo ela não tinha guidão. Ângela.

E o rapaz? O rapaz a incomodava porque ele era lindo e bom. Facilmente se percebia que aquele ônibus não era sua rotina. A moto lustrosa possivelmente estaria na revisão, podendo até ser, pelo tipo do moço, uma Kawasaki Ninja com seus 138 cavalos de potência máxima. Ele bem tinha cara de Kawasaki. Tinha um rosto lustroso, feições eficientes – cada qual com uma finalidade, pois ele parecia não ter tempo para o gratuito ­– e o vigor de caninos que desciam eretos, revelando-se em levíssimas e precisas pontas em seu sorriso largo. Era o melhor. Apetitoso. Ah, mas sua gastronomia, que preguiça de sua gastronomia! O rapaz era Ulisses. Era grandioso com seu nome heroico. Mas era também pesado de tanto músculo. Pena. Não dando para saber o nome dele – esse também – e a velha tendo de ser hábil, o sinônimo “Ulisses” parecia perfeito para o rapaz do guidão. Deixaria a moto, esportista sobre a magrela. Potente bicicleta que fala sobre seus louros.  Ele chega a Brasília, pedalando, pedalando, pedalando. Ai que cansaço, pensava Ângela.  

Mas é que um dia Ângela ganhara de sua madrinha, já falecida, o único presente valioso que lhe deram na vida. Um anel com uma pedra rara. Lindo. Raro. Mas Ângela era desastrada e a jóia caiu no ônibus, quebrando-se em miúdas partes. A moça lamentou. “Quanto dinheiro perdido! E minha madrinha, morta, que me queria tão bem. Perdoe-me, madrinha!” Mas se sentiu livre. O vento raleava a maquiagem, descobria o nariz aberto. Ela respirava tanto! Olhava os pequenos pedaços de pedra no piso do ônibus, esverdeados, reluzindo às primeiras horas da lua cheia. O vento parecia espalhar os raios da lua aos quatro cantos. Sem máscara, o rosto nu sem armadura.  E livre do peso da pedra em seu dedo. E o moço era pedra rara e linda. A joia.

Anel quebrado, lamento enfático em razão do dinheiro perdido e da falecida parente, mas dentro do peito silencioso um ânimo fresco de liberdade, que se misturava ao vento, à lua, ao dedo livre, ao ônibus que ia, ao verde caído da pedra despedaçada que reluzia, reluzia, reluzia, piscando, acendendo e apagando ao ritmo do trânsito e das voltas loucas do motorista. O coração acelerava a cada curva do velho centro. E Angela mal ouvia o último louro que Ulisses contava. Ele falava - sua boca abrindo e fechando - e ela livre. Sem bar da moda. Galinha caipira. É esse o sabor do miojo. Pensar é livre, pensava. O vento!

Foi então que... breque! O ônibus estacou em desaceleração fremente. O súbito sinal vermelho visto pelo motorista distraído. Os últimos desmanches de pedras rolando por debaixo dos bancos, agora pedacinhos verdes invisíveis, escondidos nas trevas baixas de poeira, de baratas e de chicletes incrustados no chão do coletivo. Macabéas arrancadas com violência de seus devaneios aéreos. Súbito sinal vermelho, ruído de pneus fritando ao asfalto sujo. O vento? O ônibus brecou repentino e, para Ângela, a volta à terra fora abafada. Pela primeira vez, desde que começara o intuito de pensar em liberdade, não foi o vento que lhe limpou da cara chata o pó de farmácia. O breque ria irônico de seu voo tolo, chamava-a à terra, semáforo fechado. Não! Onde está o vento? Um suor pegajoso escorria-lhe à testa, revelando, por entre o pouco pó ainda existente em sua pele, uma tez escura e crua e verdadeira. Escorria-lhe a transpiração, desenhando-lhe no rosto um suave e fino leito de rio, desses que naturalmente cortam a cara artificial da cidade.   

Violentada. Enxotada de sua vida secreta. O homem do guidão sequer percebera a pequena tragédia de Ângela. Apenas incomodado com a distração do motorista do ônibus – “parece que anda na lua”, dizia ele –, perguntou à moça se o jantar estava mesmo de pé.

- Hein, topa mesmo? Aí eu aproveito e mostro pra você a bicicleta.

Ela mal ouviu a pergunta. O homem de louros, colírio. Mas onde estava a lua cheia, meu Deus? Só via a bola vermelha da sinaleira. Uma nuvem negra escondia os raios lunares. Começava a chover, grosso e abafado e quente. A luz própria de Macabéa - antes envaidecida pelo vento - novamente fraca e fraca. Pela primeira vez voltando-se ao moço após a inundação de lua, disse-lhe que sim, que ele ligasse para confirmar o encontro. Passou-lhe o telefone.  Afinal, seria até bom saber em que consistia, de verdade mesmo, o tal “gastronômico”. Mas era palavra grandiosa, chata, ruim para falar, quase indigesta com seu dígrafo pesado. Macarrão instantâneo de galinha caipira era mais simples, ela mais livre em sua pacatez pensante, após a novela.

Mas pensou no guidão que guiava. Não queria. Queria o verde pisca-apaga da pedra quebrada, o ônibus roda-roda, o dedo livre, o vento, vento, vento, vento. Mas pensou no valor do anel. Mas pensou no pesar da madrinha morta.  Queria? Queria, não queria. E resolveu por fim, decidida e cansada, retocar a maquiagem desfeita. O ônibus rodava quando ela disse o “sim”, aceitando, encurralada, o convite. Afinal, devia aceitar porque sempre tinha sido desse modo, aquele mesmo tráfego no velho centro. Isso foi pelo menos o que supuseram as velhinhas de meus olhos, aquelas fofoqueiras que moravam em vilas distantes. Ah, elas viviam, claro, no démodé de casas antigas.