sábado, 19 de junho de 2010

Uma cidade

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

Cecília Meireles

Após algum tempo sem postagens - apesar de muitos escritos, fase de andanças, viagens, histórias e silêncios - vai aqui mais um texto. Em minhas gavetas, há outros tantos. Ainda não soube explicar porque este aqui mereceu o blog. Talvez não merecesse. Enfim, pude me aquietar colocando-o aqui. Foi escrito - e enviado - a uma amiga que há muito me fizera ter necessidade de ir ao papel e rabiscar pensamentos. Escrevi-o na pequena cidade de San Pedro de Atacama, região desértica do Chile, já no alto da Cordilheira dos Andes. Por esses tempos, de mochila nas costas, eu apenas era... uma viandante.



Há uma cidade mágica que já deve ter virado parte dos seus sonhos. Uma cidade para onde você vai, cansada e muda e só, a cada bofetão que leva quando está andando por aí. Uma cidade que de tão simples ficou sendo só sua. Ela tem casas de barro. Ela não tem asfalto. É simples como é simples este meu texto pra você. Porque tinha de ser assim, porque lá do alto o que se vê mesmo é a pequenez das coisas que, de tão reduzidas, não conseguem mesmo apresentar qualquer nível de complexidade e detalhismo. Na cidade tem vento. Tem pessoas. Tem chita. Tem cachorro. Tem tudo que se basta para uma vida. A água é pouca e suficiente. A areia é muita e suja os olhos. A cidade tem tudo porque não excede. Porque o excesso faz o andarilho se perder. Deve-se andar por ruas essenciais. O excesso pode levá-la a incompletude, minha querida. A cidade tem tudo porque é vida das mais escassas. Mas é vida.

Lá, o silêncio é muito e te preenche de pessoas. Você sabe que está só, meu bem, oh, você sabe que sabe disto: que sempre estará só - e com todo mundo - porque a vida nunca foi ter uma pessoa. Quem desejou possuir um ser humano só para si (“e quem nunca desejou?”, como diria aquela nossa outra amiga Clarice) foi aquele quem primeiramente comeu a maçã. E depois todos deram uma mordida porque é muito fácil recair no erro dos outros, a culpa nunca será mesmo de ninguém, pois a burrada é geral e assim dá pra sorrir tranquilamente. Pois volto ao que falava: você sabe que está só, mas que (e aí está o segredo bom) todo mundo anda com você. Você não deve estar entendendo meu paradoxo. Também me expliquei mal. É que a cidade é muito simples e minha alma ainda está nela, por isso não consigo falar como poetas ou filósofos, que ficaram esnobes depois de um tempo.
Explico-me: o que digo é que, aqui do alto, o vento me sopra que você pode amar os outros, ver olhos bonitos e verdadeiros, dar a mão a eles, acariciá-los. A vida só tem sentido por esses olhares: pupilas de mãe, de pai, de irmãos, de amigos, de namorados, de mestres e até de pessoas em segredo. Mas eu disse: “você está só”. É que você não pode querer possuir esses olhos, meu bem. Possuí-los é torná-los doidos, endiabrados, míopes. Pupilas aflitas presas em cavidades orbitárias. Pupilas que não percorreram mundos, que não experimentaram outras texturas de cores e traços e que agora se desesperam. Você não pode levá-las consigo. Tem de andar só, porque não precisa de um olho guia triste na coleira. É melhor tê-lo solto e mesmo assim olhando por você.
E eu já estou com muitas delongas. É porque o sol da cidade me fez perceber essas coisas que lhe falo agora. Raios solares tão fortes, em meio ao silêncio desértico de minha mais nova cidade, cochicharam comigo e eu precisava fofocar segredos: partilhar minhas descobertas, brincar de contá-las, reinventá-las.
Disse que aqui tudo é escasso, mas faço uma correção nessas mal tecladas linhas: aqui do alto, o único excesso é feito de areia e silêncio. Oh, um excesso que não excede, que não passa. Não passa porque faz com que o andarilho - que se senta nessa areia infinita - percorra necessariamente sua própria mudez. Psiu! O vento me sopra que eu já estou falando demais e que, nesse ofício mecânico de abrir e fechar a boca, esqueci-me justamente de percorrer silêncio. Nessa cidade, esse é o meu dever de casa. Se eu não cumpri-lo, o vento briga comigo. Então digo mais nada. Saiba que apenas o vento me sopra.
Beijos,
Luana Borges.