domingo, 18 de setembro de 2011

Divagações após um dia bom


Ter sorte, certa inteligência e ser feliz significa saber escolher pessoas a dedo. Minhas pessoas foram – e são - tão bem escolhidas que receio faltar-me amor.  E, quanto mais receio, mais amor tenho. Porque o amor se constrói no incerto bom, que de uma hora para outra vira diálogo bom, que de outra hora para outra vira cotidiano, que logo vira convivência e que, quando se vê (não se imaginava!), mesmo distante se sente amor. O ponto em que a distância não importa é aquele em que, não mais que de repente, essas nossas pessoas, por fazerem parte de nós, acabam inevitavelmente se transformando em nossas vidas (e de uma vida que é própria e nossa obviamente nós não nos distanciamos). E saber que tudo começou com um receio de dar bom dia ou de contar um segredo. Mas a vida não começa no receio? Aceitá-la toda viva não é atitude sem medo.
     Um indivíduo só é uno quando pode enxergar em si mesmo uma porção de outros. Só assim, pelo outrem que se vê no seio, surge uma ousadia forte. Uma coragem que é capaz de desfazer todo o medo primeiro de uma vida. A partir dela, todo o trêmulo “sim” ao ato de viver transforma-se em brado confiante. Todo o receio se esvai então em sorrisos. Sorri quem sabe escolher a dedo. Escolher a dedo a outridade certa – e saber colocá-la em nós - é a sabedoria mais doce. E saber docemente é o que procuro agora.
     Ao fim, resta-me então destinar esse pequeno texto aos Meus. Meus porque estão em Mim e me são a outridade essencial. Ora, meus porque simplesmente... me são. Deve-se perceber que o milagre mais forte está em nós e não além. O milagre mais forte é justamente a possibilidade de caberem tantas pessoas em um único seio.  Descobre-se então - não sem espanto e perplexidade – que viver é simples, o que não quer dizer fácil. Docemente, descobre-se que talvez uma vida inteira seja apenas só - e tudo - isso.
(Luana Borges)

domingo, 4 de setembro de 2011

A moça viajante e a vida de sua cozinha


Luana Borges
Um dia ela se mostrou menos menina. Cortou os cabelos. Pintou as unhas. Decidiu não mais esperar que ele viesse, cavalo branco que galopa apenas insossas ilusões. Um dia ela fez as malas, poucas roupas vestiam uma vida inteira. Um dia ela matou de saudade quem pensava que ela se manteria ali, mesma cidade de menina de cabelos presos. Um dia seus fios jogados ao vento. Agora lindos ao vento. Um dia suas mãos forasteiras plantaram em outras terras. Seus cabelos peregrinos cortaram praças e avenidas por onde sobrevoavam pássaros de cores. E a boca estrangeira tudo balbuciava na cidade verde do vale longínquo.
Mas um dia, depois de escrever a vida em ruas distantes, ela voltaria com um diário repleto de histórias. Ela voltaria e faria rir quem ficou esperando-a no concreto cinzento, quem morreu de saudades e de fumaça. Ela contaria todas as peripécias e as verdinhas normalidades cotidianas em doces fios de prosa. Ela desenrolaria, na cozinha de café quente, os novelos vividos na cidade longínqua. Dos novelos, novelas do tamanho da paz. Na cozinha, ela ia desnovelando os caminhos de fada.
Desnovelava até chegar o dia em que teria de recolocar a linha na agulha. Teria de ir a outro lugar, tecendo vida. Talvez chegaria a uma cidade laranja de sol oriental. Moça tão breve. Um dia seus fios de novo jogados ao vento, olhando tudo como estrangeiros, descobrindo tudo, tateando tudo, balbuciando tudo.
Mas é certo que haveria o dia em que a moça enraizaria os seus contos coloridos. Não hoje. Tampouco breve. Não amanhã. Um dia, sem tempo cobrado. Mas agora ela sabia: tinha de ir rápido ao encontro de outros ares e pares. Tinha de correr e sorrir à falta de sua cozinha que tudo acalenta, onde estão xícaras e bules que conversam prazenteiros. Já era hora: o dia era de ir.
Então iria. Mas não sem antes dar o último gole bicado naquele seu café, tão quente. Despedir-se-ia apenas: apenas para poder voltar. E apenas para depois se aquecer– mais uma vez e sempre e mais outra – ao gosto da bebida forte que havia em seu lar, que havia dentro daquele bule de sua cozinha-mãe. Ali, as panelas estavam sempre ao fogo. O tilintar de pratos e de chávenas e de talheres ressoava o vaporzinho de café fresco e o cheiro de frutas. Era como se as panelas fossem sabedoras dos retornos essenciais daquela moça.
E a verdade era que quem dava vida à cozinha-mãe eram as pessoas que, como a moça, chegavam viajantes das ruas. Ali, elas desnovelavam seus caminhos de fada. Sempre chegavam, dependuravam seus chapéus e bolsas e casacos, bicavam o forte café e começavam os novelos de prosa. A cozinha-mãe era inteira ouvidos. Era inteira ouvida também. E, às vezes, as caçarolas olhavam tão confortáveis os que ali estavam que a eles só lhes restava confessar segredos... E rir da vida. Geralmente os risos eram à tardinha. Sorrisos abertos que saudavam a noite e deixavam as pequenas xícaras sujas, borradas de café. Após os novelos de fios de conversa, a noite terminaria em novela. Ou em um bom livro. Lido com calma antes da próxima viagem.