domingo, 1 de novembro de 2009

Um período clariceano

Ninguém saberia que aquelas palavras agora eu conhecia. Mas eu teria que carregá-las sozinha, para não magoar o que amo. Eu teria que carregá-las sozinha porque as roubei. Mas ora... Uma vez roubadas, elas eram minhas. Mas não eram minhas por direito e, dessa forma, o que amo teria plena razão de ficar enraivecido. Por isso, eu as carregava sozinha e perpetuava um crime que era só meu, que somente eu sabia e que ainda não tinha encontrado terreno firme nas terras indóceis do coração.
Essas terras eram perigosas e meu crime as percorria, doce e tristemente. Percorria-as revelador e torcendo para encontrar um trecho seguro dentro de mim. Porque se não encontrasse, aí o mal estava feito e as terras indóceis do coração subiriam à boca e eu, humanazinha sempre tola, teria a necessidade – o desejo irrefreável – de falar aos outros sobre o meu crime. Mas seria magoar. E eu não queria magoar a quem quer que fosse. Muito menos ferir o que amo, àquela rosa amiga, de quem roubei as palavras.
Haveria mesmo necessidade de revelar qualquer coisa? Afinal, as rosas iriam um dia desabrochar e ver que o medo só combina com o desconhecido. Mas eu já as conhecia bem, tão bem que suas pétalas nem precisavam abrir a boca para eu entender os sentimentos inacabados e sigilosos. Eu as conhecia, contudo não a um ponto de tê-las como certas. Conhecia-as a um ponto de entender a ponta, apenas um pedaço pequeno de ponta, do segredo. Entendia apenas um relance do olhar. Não a visão completa. E essas rosazinhas me ensinaram – em um momento em que não havia tempo de aprender e em que eu não podia estar disposta às descobertas - que não há mal nenhum em não saber.
Aliás, ensinaram-me mais: não saber de tudo e não revelar de imediato são atributos indispensáveis à condição de carinho, cuidado e amizade. Porque há de se descobrir aos poucos, na caminhada. Há de se encontrar os mistérios cotidianos em míseras pontas de olhar. Há de se entender, sem falar. O silêncio é condição de amizade*. E há de se cuidar do que não foi explicado porque se a coisa não se explicou foi por zelo. E zelo pede tato. Os sentimentos não se apresentam acabados e definidos e expostos. O enigma é o que há de mais certo. E as pessoas têm direito a terem seus segredos.
Mas eu, humanazinha novamente, desrespeitei essa regra. Burlei o segredo de minha rosa, tão nova, mais nova que eu, e que por isso exigia tanto cuidado. Roubei o segredo e agora carrego, sozinha, esse crime. Há de se pagar. Até que minha rosazinha desabroche e veja – sem medo, porque nos conhecemos a ponto de desvendar a pontinha sempre incerta de mistério - que suas pétalas podem falar. Não tudo, porque parte do enigma é essencial. Mas podem falar sem preparar seus espinhos.
Aí eu não teria de revelar absolutamente nada porque parte do segredo roubado, por si mesma, se revelaria normal e fugidia, brotaria do dia, dos mistérios cotidianos. Mas, agora, unicamente espero que a rosa mais nova perdoe a curiosidade imprudente e desrespeitosa de quem ainda não aprendeu a zelar.
(Luana Borges)
*Clarice Lispector

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Meus vinte anos passam agora como se fossem trinta ou quarenta. Isso é besteira! De cara já vou dizendo que este texto não merece ser lido. Não quero me comprometer com você, leitor preguiçoso e que exige códigos inteligíveis. Você me cansa de explicar tudo didática e perfeitamente. Na verdade, estou mesmo é cansada de mim, sempre comprometida com os pormenores de todas as explicações. Minha vida é tola e exige de mim certa organização. Mas, no momento, a única coisa que posso esperar é meu total devaneio, ininteligível e que se perde por amar, odiar e se revoltar demais. Meu pior erro é sentir e tudo o que queria na vida era executar ações sem pensar. Os tolos têm mais sentimentos e sofrem por coisas que, de tão pequenas, os inteligentes que otimizam o tempo não conseguem nem percebê-las. Meu pior erro é sentir. Almejaria apenas uma vida simples de trabalho até às seis da tarde. À noite, só quereria desejar um programa de televisão que me levasse ao ápice da ignorância, cheia de felicidade doce e plena... E ficaria até às dez com filhos e amigos, quem sabe com uma chuva caindo e me fazendo falar da vizinha ou do cunhado. Eu não quero ser entendida, agora. Como disse, cansei-me de me explicar. Cansei-me desse outro organizado. E minha casa estremeceu quando apenas vi que poderia chorar por três horas sem motivo aparente ou quando vi que os olhos enchiam de lágrimas por desejos proibidos ou ainda quando percebi que o melhor da vida é exatamente aqueles momentos em que nada fazemos e apenas sentimo-nos viver, olhando-nos uns aos outros e respirando. E se viver exige de mim tal simplicidade, estremeci porque não a consegui. Minha casa, construída sempre com tijolos tão seguros e milimetricamente distribuídos, caiu quando vi que estes tempos tristes me separaram das coisas simples. Separaram-me pela culpa. Esse diabo sempre me perseguiu. Por que um ser humano tem de se culpar por passar a tarde olhando nuvens e sol, se isso é a vida e nada mais? Pela culpa, não me permiti parar e olhar calmamente. Meus olhares, mesmo quando não apressados por já terem cumprido o expediente do dia, sempre foram aflitos e sedentos de algum carinho pausado. Eles olharam a vida, sim, e captaram alguma beleza singela. Mas a olharam e logo pensaram no que deviam fazer para ganhá-la. Veja só! Para que ganhar uma vida que, todavia, já me foi dada? E disso veio meu cansaço de jovem que nasceu velha. E disso veio minha recente desorganização mental. Porque resolvi curtir meu presente que me foi dado e o que ganhei foi uma gastrite, recado de uma culpa que me desafia todos os dias. Mas já nem me importo. O que busco, hoje, é apenas o melhor de mim. O que conseguirei, talvez, será apenas esse estágio de contemplação: uma observação atenta e calma das coisas que passam e uma presentificação interna das coisas que ficam. Talvez isto seja a única coisa que posso e que tenho o direito de esperar de mim. Tudo o que quero. E você não precisa me entender. Sei também que minha casa caiu. Mas ainda tenho um terreno e, nele, sob a luz das estrelas do céu, estou mais desprotegida e mais desesperadamente viva.

Luana Borges

Sobre a vida de uma menina*

No quintal da minha infância, mamonas e mamões. Talos que serviam de canudos para bolhas de sabão. Dois vizinhos que brincavam ao meu lado. Minha irmã com seus lindos olhos. Os azulejos floridos, o grande tanque cheio de água que cheirava à roupa molhada e à umidade das três da tarde. Havia pães de queijo e biscoitos. Na rua de minha infância, logo acima de minha casa, tios e primas. Um armazém de balinhas gratuitas. Depois, no neon de minha adolescência, letreiros brilhavam à noite. Asfalto molhado e risos amigos. Danças e xis-salada. O centro da Capital. Talvez um violão e um menino bobo que me olhava em misto de irritação e encanto. Grandes shows e tolos protestos. Encenações em palcos comoventes. Nas luas de minha adolescência, talvez também amores desperdiçados. Tudo pelo simples prazer de ser eu assim, tão livre. Agora, chego à labuta de minha juventude. Responsabilidades. Trabalhos em meio a pessoas que também conseguem ser uma vida inteira e carregar, em seus olhares laboriosos, todas suas felicidades particulares. Bom que ainda existam seres assim. Bom que eu também, nos computadores e nas matérias de minha juventude, consiga ainda ser aquela antiga menina da bolha de sabão. Sorriso torto e franco e aberto. Daqueles cheios de dentes que quase expõem o ciso. Mas no meio da tarde quase adulta, sob intenso sol e incessante trabalho, será que ainda conseguirei respirar e pegar mamonas para brincar, mesmo que mentalmente, com todos os meus? Com a força de minha paixão, espero que sim. Tudo porque o que está ainda no meu íntimo, na verdade, são os azulejos floridos de minha infância e os grandes olhos de minha irmã. Mesmo com todas as mudanças, espero sempre ter em mim essa menina boba. Preciso dela porque ela está nos meus olhares felizes e nas minhas pupilas cintilantes. E realmente não importa se já descobri que as balinhas não eram gratuitas, pois minha tia as pagava mensalmente para o meu consumo feliz. Sempre terei a necessidade de manter minha bobeira, ingênua e inevitável.
* "mas menina é uma palavra tão bonita!" stephani echalar diz a giovanna e a luana, em conversa após o almoço. O título ia ser sobre a vida, menina veio só por causa da frase de steph...
Luana Borges