quinta-feira, 22 de julho de 2010

O menino sonhador

Os tênis sujos e surrados equilibram-se, em sua meninice, em brancos meio-fios. Nada podem esperar daquela tarde, além do sol e das horas que brincam de enganar a noite. A rua ainda está laranja de crepúsculo, pois a lua sobe preguiçosa. Satélite danado... Entrou no jogo do relógio, que combinou com seus ponteiros de tardar o dia, e então os segundos e minutos ficaram de cochicho e se esqueceram do ofício mecânico e rotineiro de passar.

Mas a lua devia ter gostado das travessuras do relógio, pois encontrara um namorado no Japão, um pássaro de olhos orientais e de plumagem lisinha e serena, que uma vez cantara sua beleza. E logo a lua inchou de felicidade e de luz. E ficava assim bem cheia e sorria tantos raios que, aqui na Terra, poetas e namorados e funcionários das fábricas nem precisariam, sob o manto negro da noite, acender suas lâmpadas artificiais. Então, para o moleque do meio-fio e dos tênis rotos, quando as vontades da lua apaixonada coincidiam com a ânsia revolucionária de um relógio proletário que protestava ao não passar, o dia laranja ficava mais bonito e tinha até gosto de suco gelado.

E o menino sabia de todos os segredos da lua e dos conluios entre relógio e ponteirinhos desaforados. E, nos momentos de crepúsculo, ficava imaginando a dor lunar ao deixar aqueles ares japoneses que cantavam tão doces e rodopiavam ventos de amor. E até se incomodava por sua amiga celeste. Também franzia a testa suada da derradeira corrida, em tom lamentoso, quando se lembrava do parceiro da parede e dos pulsos – sempre condenado, pela ordem do dia, ao trabalho incessante e às revoluções frustradas.

Mas logo passavam o incômodo e o lamento do guri. É que o laranja era bonito em demasia... e quanto mais lua e relógio demorassem por decidir suas vidas, maior era o tempo em que a cor única, de um céu borrado em vários tons, ficava. E ficava, como garoto que à tardinha se recusa a ir pra casa. A terra corada que não quer ceder. Ficando, tão fugaz. Ficando, apenas em um lapso de tempo em que os tênis do menino conversavam com os pedais terapeutas de uma bicicleta vermelha.

E, sobre duas rodas, ele corria tão doce! Tão vulto vermelho imerso, imenso, no laranja-fim-de-tarde de uma rua tão dele. Cabelos de vento, menino todo de vento, cortava veloz a cor que findava o dia. E dava boas-vindas à lua. Ouvia-lhe dizer da saudade passarinha do namorado. Falava-lhe sobre o sentir falta, essencial. E ele ainda soprava um breve“relaxa”ao companheiro relógio. Pois nada no mundo, naquele momento, podia se rebelar contra o que é sempre tão natural. Viria noite inevitável.

E meu moleque sabia de todos esses mistérios. A testa suada. A cabeça fria, de vento, sobre a bicicleta. E seus pedais giravam. Como as voltas do mundo. E nada podia parar, sob pena de que os laranjas - breves e bonitos - não fossem mais tão rotineiros.

(Luana Borges)