quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sobre a mulher que sou. Sobre o homem que não sou. Sobre o homem que fui. Sobre o mundo que eu queria captar. Sobretudo, sobre a pretensão.

Luana Borges

Hoje eu não escreveria sobre mim. E até quereria que minhas palavras fossem homens. Quereria contar uma dessas histórias repletas de personagens e de ação, criatividade em cada ato. Quereria uma escritura distante da autobiografia. Meu texto não sou eu. Nunca foi. Vocês é que pensam que sim e se deixam levar por minhas histórias que me transcendem. Transcendem-me graças a Deus e graças à palavra que, assim como o deus, não me pertence e me está além. A palavra resvala em outrem. Não fica em mim. Assim reverbera o verbo que também não nasce de mim, que também não me é originário: cato-o no mundo, já repleto de sentidos, e essa é minha profissão. Aos jornalistas, falta o entendimento de que eles devem bordar o texto com cuidado, pesquisando seus fios no emaranhado do mundo. Muito tato e delicadeza, afinal há gente por entre as cordas fiadas. Mas, entre os fios das ruas mundanas, há outra porção de gente que merece mesmo ser enforcada.
Há gente ruim. Gente que rouba nosso dinheiro e nossa comida. Esses ladrões comem demais, compram demais, engordam demais, têm ouro demais, brilham demais, espreguiçam demais e pensam de menos. Essa gentinha ruim, que coloca grana em cuecas e em onde mais couber, deixa-nos com tudo de menos – compras, comidas, dinheiro, ouro e até pensamento, porque ninguém pensa demais com fome. “O homem faminto jamais procurará estabelecer uma relação estética com o alimento”[1]. Sua privação apenas dá lugar ao desejo de saciar-se rapidamente. Dessa forma, o valor estético, o pensar sentindo, o sentir pensando e a dimensão existencial da arte não o solicitam. É por isso que essa gente que nos rouba dinheiro – corrupção deslavada - rouba-nos também a vida e o sentir, rouba-nos o pensar e a fruição. Rouba-nos os prazeres mínimos vez que fazem com que pensemos apenas na necessidade primeira: o desejo de sobreviver. Quem apenas sobrevive - inspira, expira, inspira, expira - não tem tempo de vagar por reflexões existenciais. Estas nos são roubadas ante as circunstâncias imediatas de uma vida que urge.  Então nós, jornalistas, enforcamos, quando dá (a maioria das vezes não dá), os ladrõezinhos.
Enforcamo-nos como merecem e sem piedade, a pedido de um não sei quê de cidadania e de justiça. A pedido de nossa revolta (revolta que me faz até ser piegas). O problema é que, às vezes, em nossa sede por fios bem apertados ao redor de pescoços, enforcamos pessoas erradas e não merecedoras de nossa escória. Há gente que não merece a forca em praça pública. Aqui me veio outra divagação: alguém – por mais inescrupuloso – mereceria o cuspe em meio aos flashes? Fica pra outro papo. Esse não é o assunto de nossa prosa. Perdi-me com a ideia de emaranhado de fios nas ruas do mundo, perdi-me porque há gente por entre esses fios e minhas palavras não vêm de mim, elas nascem delas, nascem delas porque eu amo essa gente. Mas ainda não cheguei ao ponto. Quereria que minhas palavras, nesse texto, hoje fossem homens, que em minha história tivesse ação e personagens redondos, que essas linhas que as senhoras e os senhores lêem agora se sucedessem pela relação de causa e efeito e que, sobretudo, ninguém tivesse a audácia de dizer “mas esse texto é você”, tão “confessional”. Não é. É HOMEM. Escrevo apenas.
E minha escritura falaria então sobre o homem mais musculoso do mundo. Seria um homem tão salgado – o sal de seu corpo sarado da última corrida, do músculo enrijecido e do cansaço dos últimos abdominais – que os misóginos aplaudiriam sua dureza áspera. Ele se inflaria e se chamaria Francisco. Seria seguro. Cantaria mulheres. Cantaria até morrer. Até morrer, morrer de novo e nascer mulher. Porque, modernizando o que disse ainda em 1952 uma amiga chamada Teresa, se antes a engenharia da mulher era a de saber construir um lar, hoje, além da boa estrutura de nossos lares, também sabemos erguer casas.  Casa e lar sobre o nosso domínio. Temos em nós a engenharia de saber fazer concreto e o doce afeto de saber construir atmosferas.
Em casa de minha avó, o sábado era inteiro bolo de chuva se fazia sol, ou banana quente com canela se chovia muito. Que sabedoria de lar! E o sábado inteiro era meu e de outras crianças. E quando começávamos a ser domingo, ficávamos tristes e com cara de missa, mas logo nos lembrávamos do lar de primos e de vida que nos esperaria no próximo final de semana. A Dona Teresa de que falei há pouco, aquela dos idos de 1950, disse-me, em um texto seu, que uma criança pobre, ao ser inquirida por um homem de bigodes sobre o fato de sua família não possuir moradia, deu-lhe uma resposta incrível.  O bigodudo disse-lhe: “que pena vocês não terem o lar!”. A espertinha retrucou, espantada com a ignorância do amigo: “lar nós temos, o que não temos é uma casa pra botar o lar dentro”.
Mas me esqueci! Como hoje estou ensimesmada e egoísta, Meu Deus! (o texto tendo de sair do papel em prol de minha existência, Céus!). Por isso, esqueci-me completamente! Meu texto hoje é homem. Meu texto hoje quereria ser homem rude, daqueles que servem apenas para cantar mulheres. Daqueles que só pensam nisso. Mas meu texto, cantando mulheres, transformou-se em uma ode aos lares, é isso? E
às casas, claro.  Um poema à ciência do concreto e do atmosférico. Elas sabem de tudo, sacaram? Da matemática ao amor. Um beijo então desse homem, um conquistador barato que entende que elas sabem, e não só sentem, e que sentem, mesmo sabendo.
Leitor, meu personagem homem resvala em mim e está me sendo meio bruto agora. Bruto porque quer tomar voz e está um pouco chateado devido à forma como eu o trato. Em torno dele, não há cenário porque ainda não consegui criar a história de meus sonhos. Onde estão minhas causas e efeitos? Meus personagens redondos? Minhas cenas? As ações? As descrições? O cenário me é só a brancura de meu papel. Ele fala:
- Tendo de ser homem bruto, pois minha criadora assim me quer, pensei em só cantar mulheres. Mas resolvi cantá-las em sabedoria e traí minha criadora em defesa dos homens. Traí-a e já é fim de texto, estou quase por morrer mesmo. Inevitavelmente morrerei. Já que é assim, não tenho medo de que ela, a criadora, mate-me devido à minha traição! Traí-a, pois cantei a inteligência de mulheres lindas. Não me detive aos seus corpos. Entretanto minha criadora querer-me-ia rude! O que consegui – céus! - foi uma ode aos lares e às casas. Ao concreto que elas dominam. Ao atmosférico que elas detêm. Minha ode significou parabéns, admiro-as! Eu não fui o Francisco áspero. Sendo Chico, fiz música das palavras. Cantei vida, olhos e mulheres. Cantei até morrer. Fui doce em meio ao sal de meu corpo sarado de músculo enrijecido. Tão doce que eles, os misóginos, até riram de mim. E eu os defendi, homens. Fui o homem que devia ter sido.  O homem que elas admiram, inclusive a criadora, que está com raiva somente porque, em verdade, quereria era jogar com as letras e fazer refletir com outra espécie de personagem-tipo, dessa espécie de homem bruto que está me lendo agora e rindo inteiro de macheza.
Então eu digo a este homem meu personagem, o único que me foi possível: “Não fui traída por você”. Traí-me a mim mesma. E ao leitor. Porque este texto, homem tão doce, acabou mesmo, a despeito de eu ter jurado que não o faria, sendo um pouco: de mim. É o fim.
Mas, no fim, sempre fica a transcendência das palavras. Que não morrem com meu personagem. Tampouco morrem comigo. Nunca é autobiográfico, nunca é simples assim. As palavras estão além. E sopram. Elas detêm o segredo de chiiiaaar, aos quatro ventos.


[1] Eduardo Portella.