Por Luana Borges
Como vós podeis supor (se não supõem, vos falo), o olho de quem tem
sangue de repórter é inquieto e ouve tudo. É olho circundante. E naquele dia as
pupilas davam mais voltas em minha íris amarela do que jamais a serena catraca
do Circular Aeroporto-Via Setor Jaó
ousara percorrer em seu movimento cotidiano de rotação. Eu vinha nesse ônibus. Eu
a rodar pelo centro da cidade rumo à minha casa. As pupilas giravam mais que
eu, estavam danadas e reparavam em tudo. Além de atentos ouvintes, esses olhos eram
faladeiros demais e uma pupila fuxicava à outra o que vira. Fuxicava como vos
fuxico agora.
É que o moço, no ônibus, estava muitíssimo interessado na moça. E o moço
contava vantagens só porque tinha moto e fazia compras em supermercado grã-fino.
Também pedalava, tinha corpo bonito de homem bonito e musculoso e, além do mais,
falava que iria a Brasília sobre duas rodas. Ele, possante, braços firmes e
duros, guidão da bicicleta. Mas a moça
sequer conhecia o bar da moda, trabalhava como atendente de empresa aérea em
aeroporto e jamais saía de casa sem sua maquiagem de aeromoça. Estava era interessada
no jantar que o moço prepararia.
Houve uma novela, certa vez, sobre uma estrela apagada. Era necessário
muito esforço para vê-la. Mais, era necessário quase um dom para que se pudesse
notá-la no céu negro e frio de uma vida. Essa estrela apagada era moça e se
chamava Macabéa. Então, naquele dia no ônibus, eis que me deparo com a
atendente maquiada, sua luz própria fraca e fraca, o balcão era seu palco. A
roupa rala se fingia chique. O batom carmim.
Ela era a minha Macabeá, fugida das páginas da novela.
- É um encontro gas... gastro...gas... gastronômico? É assim que se fala?
– dizia ela.
- Sim, um jantar. Sim, gastronômico. Gas-tro-nô-mi-co.
– respondia o homem sábio.
Então a moça sorria e deixava
entrever uma ruga, pequenos pés-de-galinha que rompiam na aridez da pele
empoada. Tinha pouca idade. Uns trinta. Não pude saber como ela se chamava
porque meus olhos eram velhas fofoqueiras de vilas distantes e, apesar de
hábeis, eles auscultaram, auscultaram e auscultaram e, no fim, nada de
revelações. Mas quando uma velhinha – apenas aquelas desse tipo que meus olhos
são – não sabe a palavra exata, se ela for hábil mesmo inventa um sinônimo e
continua a história. Daí a beleza das histórias.
E minha Macabéa podia ser qualquer uma dessas que andam de ônibus,
empoadas e brancas, mais brancas do que deveriam, mocinhas que não conheciam o
bar da moda e que tinham por obrigação ter um nariz bem empoado por detrás do
balcão. A maquiagem era a proteção - espécie de armadura pela qual minhas
Macabéas viam outros narizes empoados, estes soberbos, soerguidos por entre
maçãs de rostos tão vermelhas quanto artificiais. As maçãs repletas de agrotóxicos
e sem gosto. Além das maçãs, essas
meninas “Macas” também se protegiam de óculos que se equilibravam, sisudos, nas
pontas de narizes engravatados e gordos.
Mas o quê os narizes de gravata e as bochechas avermelhadas sentiam mesmo
em relação às minhas moças era indiferença. Não falavam porque era vergonhoso, também
não interessava, mas eles tinham até certo nojinho do pó barato de farmácia que
elas passavam naqueles narizes um pouco abertos, elas atrás do balcão, meu
Deus! Por sorte, Macabéas têm talento
para se auto-anestesiarem. A armadura de ser moça aérea.
- No aeroporto são seis e trinta da tarde e, graças a Deus, eu vou para
casa. O ônibus está cheio, mas hoje tem novela e a personagem vai ganhar na
loteria. E é hoje. Vou ver... Ah vou ver! E comendo miojo... Qual o sabor do
miojo que tenho em casa mesmo? Ah, galinha caipira!
A mulher de minha história. Erguida das valas comuns de tantas outras,
observada entre tantas macas enfileiradas, eu não sabia seu nome. Um sinônimo
para ela então. Como seria o sinônimo? Ângela. Era muito parecida com Ângela.
Misturava um ar angelical, gélido, gelo... A Ângela. Singela. Ela queria mesmo era
usar suas asas de anjo para poder voar para longe – aérea fugia do aeroporto
repleto de maçãs vermelhas e narizes soerguidos de pontas afiadas e sisudas. Aérea
como no dia em que o vento tirou todo o pó de seu nariz e ela pôde, enfim,
deixar ventar em sua pele seca sem armadura. E o vento era o que havia de melhor!
Mas ela tampouco conhecia o bar da moda, não iria a Brasília de bicicleta, não
tinha guidão nenhum que a guiasse. Sobretudo ela não tinha guidão. Ângela.
E o rapaz? O rapaz a incomodava porque ele era lindo e bom. Facilmente se
percebia que aquele ônibus não era sua rotina. A moto lustrosa possivelmente
estaria na revisão, podendo até ser, pelo tipo do moço, uma Kawasaki Ninja com seus
138 cavalos de potência máxima. Ele bem tinha cara de Kawasaki. Tinha um rosto
lustroso, feições eficientes – cada qual com uma finalidade, pois ele parecia
não ter tempo para o gratuito – e o vigor de caninos que desciam eretos, revelando-se
em levíssimas e precisas pontas em seu sorriso largo. Era o melhor. Apetitoso. Ah,
mas sua gastronomia, que preguiça de sua gastronomia! O rapaz era Ulisses. Era
grandioso com seu nome heroico. Mas era também pesado de tanto músculo. Pena. Não
dando para saber o nome dele – esse também – e a velha tendo de ser hábil, o
sinônimo “Ulisses” parecia perfeito para o rapaz do guidão. Deixaria a moto, esportista
sobre a magrela. Potente bicicleta que fala sobre seus louros. Ele chega a Brasília, pedalando, pedalando,
pedalando. Ai que cansaço, pensava Ângela.
Mas é que um dia Ângela ganhara de sua madrinha, já falecida, o único
presente valioso que lhe deram na vida. Um anel com uma pedra rara. Lindo.
Raro. Mas Ângela era desastrada e a jóia caiu no ônibus, quebrando-se em miúdas
partes. A moça lamentou. “Quanto dinheiro perdido! E minha madrinha, morta, que
me queria tão bem. Perdoe-me, madrinha!” Mas se sentiu livre. O vento raleava a
maquiagem, descobria o nariz aberto. Ela respirava tanto! Olhava os pequenos
pedaços de pedra no piso do ônibus, esverdeados, reluzindo às primeiras horas
da lua cheia. O vento parecia espalhar os raios da lua aos quatro cantos. Sem
máscara, o rosto nu sem armadura. E livre
do peso da pedra em seu dedo. E o moço era pedra rara e linda. A joia.
Anel quebrado, lamento enfático em razão do dinheiro perdido e da
falecida parente, mas dentro do peito silencioso um ânimo fresco de liberdade,
que se misturava ao vento, à lua, ao dedo livre, ao ônibus que ia, ao verde caído
da pedra despedaçada que reluzia, reluzia, reluzia, piscando, acendendo e
apagando ao ritmo do trânsito e das voltas loucas do motorista. O coração
acelerava a cada curva do velho centro. E Angela mal ouvia o último louro que
Ulisses contava. Ele falava - sua boca abrindo e fechando - e ela livre. Sem
bar da moda. Galinha caipira. É esse o sabor do miojo. Pensar é livre, pensava.
O vento!
Foi então que... breque! O ônibus estacou em desaceleração fremente. O súbito
sinal vermelho visto pelo motorista distraído. Os últimos desmanches de pedras
rolando por debaixo dos bancos, agora pedacinhos verdes invisíveis, escondidos
nas trevas baixas de poeira, de baratas e de chicletes incrustados no chão do
coletivo. Macabéas arrancadas com violência de seus devaneios aéreos. Súbito sinal
vermelho, ruído de pneus fritando ao asfalto sujo. O vento? O ônibus brecou
repentino e, para Ângela, a volta à terra fora abafada. Pela primeira vez,
desde que começara o intuito de pensar em liberdade, não foi o vento que lhe
limpou da cara chata o pó de farmácia. O breque ria irônico de seu voo tolo,
chamava-a à terra, semáforo fechado. Não! Onde está o vento? Um suor pegajoso
escorria-lhe à testa, revelando, por entre o pouco pó ainda existente em sua
pele, uma tez escura e crua e verdadeira. Escorria-lhe a transpiração,
desenhando-lhe no rosto um suave e fino leito de rio, desses que naturalmente
cortam a cara artificial da cidade.
Violentada. Enxotada de sua vida secreta. O homem do guidão sequer
percebera a pequena tragédia de Ângela. Apenas incomodado com a distração do
motorista do ônibus – “parece que anda na lua”, dizia ele –, perguntou à moça
se o jantar estava mesmo de pé.
- Hein, topa mesmo? Aí eu aproveito e mostro pra você a bicicleta.
Ela mal ouviu a pergunta. O homem de louros, colírio. Mas onde estava a
lua cheia, meu Deus? Só via a bola vermelha da sinaleira. Uma nuvem negra
escondia os raios lunares. Começava a chover, grosso e abafado e quente. A luz
própria de Macabéa - antes envaidecida pelo vento - novamente fraca e fraca.
Pela primeira vez voltando-se ao moço após a inundação de lua, disse-lhe que
sim, que ele ligasse para confirmar o encontro. Passou-lhe o telefone. Afinal, seria até bom saber em que consistia, de
verdade mesmo, o tal “gastronômico”. Mas era palavra grandiosa, chata, ruim
para falar, quase indigesta com seu dígrafo pesado. Macarrão instantâneo de galinha
caipira era mais simples, ela mais livre em sua pacatez pensante, após a
novela.
Mas pensou no guidão que guiava. Não queria. Queria o verde pisca-apaga
da pedra quebrada, o ônibus roda-roda, o dedo livre, o vento, vento, vento,
vento. Mas pensou no valor do anel. Mas pensou no pesar da madrinha morta. Queria? Queria, não queria. E resolveu por fim,
decidida e cansada, retocar a maquiagem desfeita. O ônibus rodava quando ela disse
o “sim”, aceitando, encurralada, o convite. Afinal, devia aceitar porque sempre
tinha sido desse modo, aquele mesmo tráfego no velho centro. Isso foi pelo
menos o que supuseram as velhinhas de meus olhos, aquelas fofoqueiras que
moravam em vilas distantes. Ah, elas viviam, claro, no démodé de casas antigas.