quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Clarice e Cecília (aquém e além de palavras)

Suas saias já não mais roçavam complacentes pela casa, já não mais tinham aquela doçura e singeleza do rosa chita de bordados delicados. Ela já pudera gritar alto e, muitas vezes, até perdia a razão e o senso por ter vibrado a garganta veemente. Aquelas suas cordas vocais às vezes eram tão opressoras que ofendiam, finas e agudas e humanas, as pessoas que ela mais amava, logo aquelas que ela não tolerava de tanto amor.
Ah, ela também tinha a felicidade de quem trabalha, ordeira e cotidiana, vinda da fábrica do expediente. Ela adorava escritoras, mas as lia pouco, na verdade lia quase nada. Era porque sempre dava uma loucura por escrever. Então começava um livro, parava, escrevia besteiras e retornava depois. Demorava-se nele como quem se perde. Como quem quer se perder. Era ignorante de olhos marejados. Uma íris amarela, que abrigava pupila aflita e circundante, e logo se misturava à chuva de lágrimas que vinha por qualquer coisa.
Ainda acreditava que lua bonita, em noite de cidade suja, aliviava o cansaço. E chorava contida como se a água salgada de seus olhos limpasse o concreto urbano. Era Cecília. Amiga de Clarice com quem conversava uma linguagem delas próprias, que só pessoas bem estranhas iguais as duas iriam entender e rir. Aliás, elas riam por horas ao telefone. Riam no tráfego de carros sisudos. Riam nas ruas antigas de um lugar histórico. E Cecília tinha a amizade de Clarice, que a olhava profunda, sem se revelar. Apenas olhava assim de um jeito meigo, que logo ficava perigoso, porque afinal se revelar deve ser muito perigoso mesmo.
Cecília escolhia sempre o mais difícil e continuava. Feliz. Sabia que mentiam. Oh, também sabia perfeitamente que aquele homem não era assim tão bom. E, apesar de não gostar - e de não achar justo - aceitar o erro feio e repetido e egoísta de alguém, era mais fácil fingir acreditar em mentiras. Então inventava suas próprias histórias. Fantasiava carinhos. E parava de escrever quando não sabia mais quais palavras usar. Ou quando ficava escuro demais para achar as letras. Ou quando vinha a preguiça de dizer frases nas entrelinhas do breu. Facilmente se cansava. E pronto. E só.
E só, muda e linda, lembrava Clarice, de olhos fechados, os cabelos escorridos na chuva, os pingos fortes, os ventos bons, as mãos nos bolsos. Elas estavam cerradas e Cecília ia. Em direção a qualquer lugar. Em direção ao que devia ser dela. Carregava uma incerteza tão bela sobre o futuro – embora soubesse que alguma coisa, de fato, seria algum dia dela – que a fazia olhar fixamente ao longe, por entre o aguaceiro que vinha do céu.
Ela apenas desejava acompanhar os ventos promissores do sul. Com eles chegaria enfim àquele povoado da serra, ou quem sabe à paisagem erma dos campos mineiros, ou talvez se depararia com os prédios antigos, alaranjados de pôr-do-sol, da capital fria de cafés quentes. A verdade é que ela só quereria chegar a qualquer lugar, com a graça de um passageiro consciente de seu estado de passagem.
E Cecília conhecia pouco, menina de tudo, mas sabia que a vida era pessoas que iam e vinham, sempre efêmeras, mas que se demoravam eternas nos corações tolos. Por isso escrevia. Escrevia gentes. Escrevia céus cinzas ou sóis escaldantes. Escrevia suspiros demorados ou palpitações terríveis. Fazia chover letras a fim de fixar as coisas. Escrevia para não perdê-las. E o fugidio então criava raízes no terreno firme e doido de seu coração, já assoberbado de tantas batidas.
(Luana Borges)

4 comentários:

Gisele Pimenta disse...

Existem tantas Cecílias e Clarices por aí, né, Luzinha!
Texto lindo o seu! Quando crescer quero ser assim!

:)

Doce Bárbara disse...

Oi Luana, tudo bem? Não sei se vai se lembrar de mim sou prima da Isa por parte de mãe, moro em Brasília. ADOREI seus textos, vou voltar sempre.
Beijos

Doce Bárbara disse...

"E Cecília conhecia pouco, menina de tudo, mas sabia que a vida era pessoas que iam e vinham, sempre efêmeras, mas que se demoravam eternas nos corações tolos. Por isso escrevia. Escrevia gentes. Escrevia céus cinzas ou sóis escaldantes. Escrevia suspiros demorados ou palpitações terríveis. Fazia chover letras a fim de fixar as coisas. Escrevia para não perdê-las. E o fugidio então criava raízes no terreno firme e doido de seu coração, já assoberbado de tantas batidas."
MENINA, este último parágrafo merecia prêmio!
Beijos

Alexandre Cavarzan disse...

Lindo o texto. Lindo e...
não sei nem mais o que dizer.
Embasbacado!